Reportagem do Jornal das Lajes de Venâncio Resende

Crianças portuguesas de 3 a 6 anos aprendem educação financeira, em projeto inédito

São crianças do Jardim de Infância de Vila do Bispo, no Algarve

Último dia de junho, encerramento do ano letivo de 2016/2017. Cheguei ao Jardim da Infância de Vila do Bispo, no Algarve, em companhia da educadora Lina Nascimento. As crianças nos aguardavam, provavelmente ansiosas para conhecer um brasileiro, e fui saudado por todas pelo meu nome completo: “Bom dia, José Venâncio Resende!”

Lina formou uma roda e as crianças sentaram no chão. Cada uma apresentou-se (nome, idade, alguma informação sobre si quando a criança assim o quisesse) e o grupo contou a história do projeto de educação financeira do ano letivo que terminava. Desde a definição do sonho (“Sonhamos e… reinamos”), passando pela construção dos mealheiros (cofrinhos) para viabilizar o sonho, até a viagem, a doação de parte do dinheiro e o investimento. O sonho a ser concretizado era a realização de uma visita ao Palácio de Queluz, em Sintra, para fazer uma recriação histórica.

Este é o terceiro projeto de educação financeira desenvolvido por Lina Maria Arvelos do Nascimento. O primeiro de sua iniciativa aconteceu no ano letivo de 2013/2014, intitulado “Sonhamos e… Lá Vamos”, com o apoio da Câmara Municipal de Vila do Bispo, sul de Portugal. Lina utiliza sua experiência de educadora de infância desde 1987, no Algarve (Concelhos de Lagos, Monchique e Vila do Bispo).

 

Tripé mágico

O projeto envolve uma turma de 25 crianças, sendo que o grupo é renovado parcialmente a cada início de ano letivo. Lina parte do princípio de que “só existe sucesso financeiro se houver equilíbrio entre as três vertentes: poupar, doar e investir”.

Mas o motor deste tripé mágico é o sonho comum, que é delineado por Lina e seus alunos (de 3 a 6 anos de idade). “Tem de ser um sonho que, para ser concretizado, é necessário dinheiro.”

A partir do sonho, Lina cria uma história relacionada com este sonho das crianças e com o seu objetivo pedagógico.

Para conseguir o dinheiro, são delineadas estratégias, em colaboração com as famílias das crianças, relata Lina. De início, cada criança leva, quinzenal ou mensalmente, para a sala de aula um determinado valor, normalmente são três euros.

A etapa seguinte é a construção dos mealheiros por parte das crianças, com material reciclado. Estes “cofrinhos” tem a ver com os personagens da história criada. São três: um mealheiro para poupar, outro para doar e o terceiro para investir. Nestes mealheiros, as crianças depositam o dinheiro arrecadado em valores iguais.

 

Estratégia

No ano letivo em que o projeto é implantado, a estratégia comum está centrada na confecção de bolos por parte dos pais. Bolos estes que são vendidos na comunidade, às quartas-feiras, pelas crianças. Além disso, há outras iniciativas relacionadas com o projeto desenvolvido, explica Lina.

As crianças distribuem o dinheiro angariado em partes iguais entre os três mealheiros, trabalhando-se neste processo conhecimentos de matemática (seriação das moedas, classificação, contagem, conhecimento das notas, símbolos numéricos etc.).

O dinheiro da poupança é o foco para concretizar o sonho, diz Lina. Já a destinação do dinheiro da doação é definida por todos (educadora, crianças e pais). “O investimento é o que permite à criança entender que o dinheiro tem a magia da multiplicação.”

Segundo Lina, o dinheiro do investimento possibilita comprar, por exemplo, os ingredientes para a confecção do bolo a ser vendido. “E permite que as crianças entendam que vão vender o bolo por um preço mais alto do que gastaram para fazê-lo.”

Outra forma de trabalhar o mealheiro de investimento é adquirir objetos que possam enriquecer os nossos conhecimentos (por exemplo, aparelho de TV, máquina fotográfica, livros etc.), assinala Lina.

O objetivo é que as crianças aprendam que o dinheiro é bom, ensina, ajuda-nos, ajuda os outros, disciplina-nos e faz-nos concretizar sonhos, resume Lina. Assim, o projeto atinge amplamente os objetivos do referencial de Educação Financeira criado recentemente pelo Ministério da Educação.

 

Oceanário

O primeiro projeto de educação financeira foi implantado no ano letivo de 2013/2014. Lina e seus alunos definiram como sonho a visita ao Oceanário de Lisboa, na atividade denominada “Dormir com os tubarões e visitar Kidzânia”. A Kidzânia é uma miniatura de cidade em Lisboa onde cada criança recebe certa quantia de dinheiro para ela gerir (gastar ou ganhar) durante um dia.

Tão logo foi definido o sonho, Lina criou a história “Os manos Grunhim”, com os personagens “Poupar Grunhim”, “Pradar Grunhim” e “Investe Grunhim”. Os mealheiros, em forma de porquinhos, foram construídos com garrafas pet.

A Câmara Municipal de Vila do Bispo cedeu bancas nos mercados de Sagres e da Vila do Bispo para as crianças, suas mães e avós venderem bolos e outros produtos (por exemplo, pinhas decoradas e castiçais para o Natal) com a finalidade de abastecer os mealheiros.

Outra forma de arrecadação foi a elaboração e venda do livro “Mãe, obrigado (a)! Com os teus bolos aprendi Educação Financeira”, a partir das receitas dos bolos feitos pelas mães das crianças. Também foi feita uma rifa de uma “cesta de primavera”, vendida pelas crianças.

O dinheiro arrecadado foi suficiente para pagar a concretização do sonho, que durou dois dias, e ainda visitar o Pavilhão do Conhecimento em Lisboa, bancando inclusive as despesas de alimentação não apenas das crianças como também dos familiares que as acompanharam.

O dinheiro do mealheiro da doação foi destinado à ala pediátrica do Hospital do Barlavento do Algarve. Já o dinheiro do investimento foi utilizado na aquisição de um aparelho de TV e de uma máquina fotográfica.

 

Cidade do Porto

O sonho do ano letivo de 2014/2015 tinha o nome de “Sonhamos e… voamos”, que era fazer o “batismo de voo” – andar de avião pela primeira vez. As crianças construíram um mealheiro-dinossauro (poupar), um mealheiro-fada (doar) e resolveram manter o “Investe Grunhim” do projeto anterior.

Além da confecção dos bolos para as crianças venderem, foi realizada uma mega-festa em Barão de São Miguel, com grande participação da comunidade. Clubes recreativos, restaurants, bares, supermercados e associações doaram seus serviços e produtos em benefício do projeto. Cobraram-se o ingresso (entrada) e as refeições e foi montada uma banca para a venda dos produtos.

Outra fonte de arrecadação foi a inauguração de um salão de beleza, na qual foi feita uma angariação de fundos para o projeto. Além disso, foram distribuídos “aviões mealheiros” pelos cafés de todo o concelho onde as pessoas podiam fazer a sua doação. “Neste projeto, tivemos muitos patrocinadores, como juntas de freguesia e empresas locais”, resume Lina.

O dinheiro arrecadado pagou a viagem de avião entre Faro (sul) e Porto (norte), o ônibus (auto-carro) alugado no Porto, a estadia e alimentação num colégio, bem como as visitas a Serralves (parque com atividades lúdicas e culturais), ao Parque Biológico de Gaia e ao Teatro de Marionetes do Porto.

O dinheiro da doação foi repassado para a entidade “Make-a-Wish” que viabiliza a realização dos sonhos das crianças com doenças terminais. Já o dinheiro do investimento foi utilizado na compra de um projetor multimedia e de uma máquina de cortar papel e tecido.

 

Reis e rainhas

Depois de definido o projeto “Sonhamos e… reinamos”, Lina criou e adaptou a história a partir do livro “As estrelas douradas”, dos Irmãos Crimm. Tal aconteceu porque uma das crianças que frequenta a sala é filha de mãe alemã e descendente dos próprios Irmãos Grimm.

As crianças construíram os três mealheiros em forma de castelo. Além da arrecadação fixa (três euros enviados por cada mãe) e da venda dos bolos, foi feita uma rifa de um quadro (pintura) doado. “Também ganhamos o primeiro prêmio do concurso de máscaras no desfile do carnaval de Sagres”, conta Lina.

O dinheiro da poupança serviu para pagar a entrada no Palácio de Queluz, a estadia e a alimentação das crianças e seus familiares e ainda sobrou para uma visita ao Museu do Dinheiro em Lisboa.

Por decisão das crianças, o dinheiro do mealheiro da doação foi destinado à aquisição de um telescópio para o Walking Sagres (empresa de caminhadas e preservação da natureza). Como ainda sobrou algum dinheiro, as crianças decidiram oferecer 50 palets de água (seis garrafas em cada palet) aos bombeiros que estavam trabalhando no combate aos incêndios de Pedrógrão Grande no centro do país.

O dinheiro do investimento foi direcionado para a aquisição de livros com temas desconhecidos para as crianças, como o livro “Horizonte” do qual eles gostaram muito, conta Lina. “Mais uma vez foi trabalhada uma das formas mais interessantes do investimento, que é investir em conhecimento.”

A novidade deste projeto foi o trabalho com o dinheiro ao nível emocional, conta Lina. “As crianças foram estimuladas a fazer experiências científicas e a brincar livremente com notas e moedas. A ideia foi trabalhar a emoção, ou seja, sentir, cheirar, enfim, explorar o dinheiro e trabalhar as crenças negativas e positivas que cada criança apresenta.”

 

Breve histórico

“Através de uma dificuldade financeira que eu tive, comecei a estudar biografias de pessoas que se destacaram por alcançar o sucesso financeiro a partir do nada”, conta Lina. Um livro, particularmente, marcou a educadora: “Pai Rico Pai Pobre”, de Robert Kyosaki, traduzido no Brasil.

Lina, então, começou a pesquisar em Portugal informações sobre cursos e eventos relacionados com o assunto. Assim, em 2011, fez um curso de finanças pessoais realizado pela empresa I have the power. No mesmo ano, participou da 3ª Conferência Internacional de Educação Financeira, na Universidade de Aveiro.

No ano letivo de 2013/14, Lina iniciou o projeto de educação financeira “Sonhamos e… lá vamos”, com 25 crianças do Jardim de Infância da Vila do Bispo. Em julho de 2014, ela foi convidada para apresentar o projeto na 5ª Conferência Internacional de Educação Financeira da Universidade de Aveiro. “Foi neste evento que conheci a Vera Rita (professora de Psicologia Econômica em São Paulo) que também estava apresentando um trabalho.”

Por indicação de Vera Rita, Lina foi convidada a apresentar o seu projeto na 4ª Conferência de Ciências Comportamentais e Educação do Investidor, promovida pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), no período de 5 a 8 de dezembro de 2016, no Rio de Janeiro. Cerca de 200 pessoas de 25 países, entre empresários, economistas, planejadores financeiros e estudantes universitários, assistiram à apresentação do projeto “Sonhamos e… lá vamos”.

Em conversas informais, muitos participantes consideraram o projeto de Lina a melhor apresentação do último evento da CVM, conta a professora Vera Rita de Mello Ferreira.

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José Venâncio de Resende
, Jornal das Lajes
04 Julho 2017

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